faróis de nevoeiro virados do avesso do umbigo...
"... no país. Nas empresas, o mais comum dos empregados se acha virtuoso na especialidade da maledicência; nas estradas, o mais papalvo dos condutores acha que ele é que merecia ir ao volante daquele Porshe; no totomilhões, todos nós achamos uma injustiça a fortuna só sair aos outros, que nem sabem onde gastar o dinheiro, enquanto nós bem o saberíamos aplicar com sabedoria e, até, com um bocadinho de espírito cristão; e, na esplanada, todos achamos que a bela rapariga que se delicia com um gelado na companhia de um brutamontes de cérebro apertado pelos músculos estaria muito melhor na nossa mesa.
Em suma, um dos maiores problemas dos portugueses é achar que tudo o que os outros têm, ou ganham, é sempre duplamente injusto, não só por eles não o merecerem ter ou ganhar, mas ainda porque quem merecia ter e ganhar éramos nós.
Tudo isto nos provoca uma sensação de injustiça nostálgica e nos obriga a sermos azedos e contrariadores das pequenas felicidades que, apesar de tudo, o mundo nos oferece.
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Mas se Deus nos deu olhos foi para olharmos os outros e não para olharmos para nós. Se a entidade divina quisesse, mesmo, que nos olhássemos para dentro, sempre haveria de de se ter lembrado de nos dar um género de faróis de nevoeiro virados do avesso do umbigo. É verdade que existem espelhos, mas esses, como todos sabem, servem, apenas, para nos admirarmos e contemplarmos na perfeição, única, dos nossos seres.
É assim que percebemos que os outros, coitados, nos invejam..."
de Vitor Serpa in A Bola.