... algures na costa portuguesa mesmo a sul da foz do rio Mondego.
Era, como se dizia então, um bom pesqueiro. Havia fartura de pescado e as artes, ainda novas e de não fácil manuseio, vinham carregadas até á vergueira
... algures na costa portuguesa mesmo a sul da foz do rio Mondego.
Era, como se dizia então, um bom pesqueiro. Havia fartura de pescado e as artes, ainda novas e de não fácil manuseio, vinham carregadas até á vergueira
Estamos em mais um novo dia, só que este é especial, é 25 de Abril, dia da Liberdade.
Dizer liberdade parece pouco, tantas e tantas vezes a pronunciamos e porque, felizmente, a vivemos em plenitude nem damos por ela. Tão adquirida está, quase parece não existir, ou, por outro lado, não poderá ser outra coisa a não ser o que é: Liberdade.
Nunca sentimos a necessidade de a regar, de a alimentar para que não seque, para que não morra …
Apetece-me contar-vos uma estória de um outro tempo, do tempo da minha infância … do 24 de Abril e do império que nunca mais terminava.
Vivíamos numa cidade colonial, moçambicana, num bairro airoso cheio de sol e da nossa alegria juvenil que aumentava e muito quando estávamos de férias escolares. Nessas alturas invariavelmente discutíamos renhidos campeonatos de futebol de rua que começava de manhã cedo, tinha intervalo à hora do almoço e terminava tarde caída.
Jogávamos descalços que as ruas eram de saibro, as balizas eram duas sapatilhas e não havia guarda redes. Equipa que ganhava ficava e continuava a jogar e a que perdia saía e dava lugar a outra. Alguns jogos eram tão renhidos que até a policia, cipaios vestidos de caqui e armados de cassetetes, paravam a ver-nos correr e gritar atrás da bola a marcar golos e golos.
Sorriam os policias cipaios e aplaudiam quando as jogadas pareciam dignas de Eusébios, Colunas …
Um dia, de manhã, apareceram dois pretitos da minha idade.
Juntaram-se a uma das equipas e jogavam futebol que era uma maravilha.
Riam alegres e ganhavam e ganhavam …
Todos nós os queríamos ter na nossa equipa.
A meio da tarde o jogo decorria alegre e a equipa onde jogavam os dois pretitos da minha idade continuava a jogar e a ganhar.
E apareceram os policias cipaios que gostavam de nos ver jogar. Mas, daquela vez, não pararam a sorrir e a aplaudir.
Carregaram o sobrolho, sacaram dos cassetetes, invadiram o jogo, foram ter com os dois pretitos da minha idade, encostaram os cassetetes às costas nuas dos dois pretitos da minha idade e expulsaram os pretitos da minha idade do nosso jogo, dizendo:
- Vai, vai, não pode estar aqui!
- O teu bairro não é aqui!
- Suca, suca, vai, vai!
O sorriso dos pretitos da minha idade desapareceu, no seu lugar apareceu um enorme, mas não espantado, olhar de medo e fugiram.
Corremos para os policias cipaios a ralhar e a barafustar que não podiam fazer aquilo. Eles meteram os cassetetes à cintura e viraram-nos as costas …
Dei comigo a lançar um olhar furioso aos policias cipaios num misto de raiva e confusão, muita confusão sem compreender o que se tinha passado.
Nunca mais gostei de policias cipaios e muito menos dos seus cassetetes.
Por ironia do destino, anos volvidos, em finais de 1973, senti nos costados o ferrete do sabor ardente e dorido daqueles cassetetes, mas isso é outra estória…
Do sitiado quartel do Carmo continuava a emergir uma desesperante, silenciosa e passiva resistência.
O povo apinhava-se, exultante, em redor e no seio das tropas presentes.
O capitão Salgueiro Maia esgotara quase todas as manobras para a rendição de Marcelo Caetano.
Nestas condições, as pressões vindas de todos os lados no sentido de os carros de combate arrasarem o quartel e aniquilarem os sitiados eram muitas e em crescendo.
É, então, que a grandeza desse homem, verdadeiro capitão de Abril, sobressai enorme!
A uma última insistência para abrir fogo e acabar de vez com aquela resistência responde:
- Disparar?
- Disparar é fácil!
- Disparar é fácil, muito fácil!
- Isto, isto que está a acontecer não é uma guerra de canhões!
Depois, ... depois o general Spínola entendeu que este Homem não detinha competências militares para comandar tamanha força e ... retirou-lhe o Comando.
O general enganou-se!
Salgueiro Maia comandou de forma exemplar e com um sentido de pátria que só está ao alcance de alguns.
Comemoram-se hoje os 35 anos de vida da democracia portuguesa.
Parida na madrugada de 25 de Abril de 1974, gerada na consciência, no sofrimento e luta de alguns e construída por quase todos (gosto de pensar que sim) ao longo destes breves 35 anos.
Evoco, aqui, um dos portugueses que mais pugnou por tal desiderato.
Zeca Afonso.
Essa consciência viva da necessidade da mudança, esse poeta de sempre e essa voz universal. E, já agora que ninguem nos ouve, meu professor de ciências naturais nos longínquos anos do liceu Pero de Anaia.
Partilho uma música, TU GITANA, escrita por Zeca Afonso e interpretada pelo excelente grupo galego; Luar na Lubre.
Longa vida, 25 de Abril!
Tu gitana que adivinhas Me lo digas, poes no lo sê Se saldre dessa aventura Ô si nela moriré Ô si nela perco la vida Ô si nela triumfare Tu gitana que adivinhas Me lo digas, poes no lo sê
Amanhã é 25 de Abril e comemora-se o dia da Liberdade.
Porém, hoje, ainda é 24 de Abril. Véspera da esperança e da utopia.
E, enquanto ela - a liberdade - não chegava a juventude "daquele" Portugal vivia o quotidiano que, por vezes, passava por dar a vida ( para glória do Império) de forma cuel e desumanamente anónima num destino que não escolhia nem desejava.
Partilho convosco a desdita de um amigo de infância, o Chico.
Morreu em Setembro de 1973, de Portugal fardado, estilhaçado por uma mina, numa picada, algures em Moçambique.
Dali a escassos quatro meses era eu que me apresentava, como recruta, na Escola prática de infantaria de Boane.
Para lá, milicianamente obrigado, fui ... mas mais consciente e, porque não dizê-lo, com muito, mas muito mais medo!
O Alferes Chico
Filho de indiana e português
O Chico era filho de Indiana e Português.
O primeiro vagido, em Goa, o pai lhe ouviu.
De militar era varão e o mais velho de três.
Ainda menino da Índia Portuguesa fugiu
E à Beira quente de Sofala, um dia chegava.
Sua mãe, saudosa, a amada Goa não esquecia
E o Chico sabia, por isso, mais a amava.
Com seu largo coração, do tamanho do amor
A dor que a enviuvou, mais depressa fenecia,
Apesar de ele por seu pai sentir tamanha dor.
Os sapatos rotos, glória da militar pensão,
Palmilhavam dia a dia o caminho da escola.
Assim foi crescendo em tamanho e coração.
De Baden Powell, o exemplo cantou à viola
E a linda e loira Marília amou como Platão.
Quando, já homem, à guerra o obrigaram a ir
Com Marília, um dia jurou, por amor se ligar.
Louvando sonhos castos de carne por ferir,
Ali mesmo juraram, um dia, virgens se casar.
E, vos juro, Chico a Zona Verde nunca pisou.
A nós, amigos, ao deboche jovial sempre disse
Jura de amor por sua Marília ele nunca ousou
Um dia sequer pensar que não cumprisse.
Até‚ quando, no mato, com febres doente ficou
E a negra, bonita e meiga, seu corpo desejou.
Alferes amigo, de riso fácil e coração quente.
Seus homens, debaixo de tiro, sempre comandou.
Perguntou-se do porquê dessa guerra demente.
Seu sangue, misto de sangues, nunca aceitou
Que Portugal valoroso de cultura universal
Se perdesse na utópica posse da terra de outrem.
Derramasse sangue jovem do povo sem igual
Para ser dono de quem não quer ser de ninguém.
Certo dia à Beira foi ter com a virgem Marília.
Falar com o amigo e bom padre Fernando
Marcar o dia em que, com Marília, se casaria.
Sete dias pela Beira, à civil, esteve namorando.
Contou, no seu jeito de enleio, a guerra que fazia
Quando, com os amigos, um copo ia petiscando
E as lágrimas sofridas pelo camarada que morria.
Um dia o Chico, de alferes fardado, a estrada tomou
Com destino à Companhia, algures no mato a poente.
A coluna, pela picada de Tete, em Moatize, a tomou.