... algures na costa portuguesa mesmo a sul da foz do rio Mondego.
Era, como se dizia então, um bom pesqueiro. Havia fartura de pescado e as artes, ainda novas e de não fácil manuseio, vinham carregadas até á vergueira
... algures na costa portuguesa mesmo a sul da foz do rio Mondego.
Era, como se dizia então, um bom pesqueiro. Havia fartura de pescado e as artes, ainda novas e de não fácil manuseio, vinham carregadas até á vergueira
Tenho mesmo de partilhar os belos momentos de fraterna humanidade que presenciei, hoje, depois do almoço, quando decidi ir tomar um cafezito ao portinho da Gala, mais precisamente ao espaço cultural e de convivio dos pescadores que, em boa hora, a Câmara e a Junta de Freguesia lá decidiram construir. Como habitualmente, aquela hora, encontrei um espaço repleto de velhos pescadores covagalenses, quase todos reformados, alguns mais novos e emigrantes queimando o resto das férias. Distribuidos pelas mesas entretinham-se a jogar às cartas conversando e bebericando uns cafés. Há sempre retalhos de alarido e momentos de maior silencio que refletem as nuances e peripécias do jogo, mas, hoje, senti que havia por ali uma aragem de energia positiva como se a serenidade, a amizade e a fraternidade ali tivessem decidido repousar um pouco, fazendo companhia aqueles velhos pescadores. Retirando a "bica" do balcão sentei-me à mesa dos Senhores Lucilio, Manuel e António. Não o fiz por acaso. Para mim aquela era uma mesa especial. Jogavam o Gin Rummy lenta e pausadamente. O Sr. Lucilio, bem mais velho que os outros dois, invariavelmente e com o apoio do Sr. Manuel, pacientemente ajudava o Sr. António a jogar e a retirar e colocar as cartas no baralho. Por sua vez, o Sr. Antonio, compenetrado e focado, lentamente, alinhava as cartas na palma da mão de acordo com os naipes e valores. Vazava a carta que entendia largar e recolhia outra que aconchegava às outras. Sempre seguido pelo olhar atento e amigo dos seus parceiros. Era visivel, quase se sentia, o dificil desfiar do seu raciocinio, as suas contas e o esforço compenetrado com que executava os gestos do jogo. E ganhou um que eu bem vi. Talvez alguns de vós já tenham entendido e reconhecido os srs. Lucilio, Manuel e António. Mas eu explico; o Sr. António sofreu há algum tempo um AVC, tendo ficado retido todo este tempo nos hospitais a tentar safar-se. Agora, ainda precisando de ajuda para se levantar, sentar e movimentar, iniciou a sua recuperação e que bela fisioterapia teve ali com a ajuda dos seus amigos. Um abraço, Sr. Lucilio Caneira. Um abraço, Sr. Manuel Camarão. Um abraço do tamanho do mundo, Sanguinho. Força, velho pescador!
Boaventura de Sousa Santos. "Os mercados cometem crimes contra a humanidade"
por Filipa Martins, Publicado em 01 de Janeiro de 2011.
Para o sociólogo, Portugal está a ser vitima de um ataque especulativo não justificado dos mercados internacionais.
... "Mas Portugal não deixa de estar mais debilitado que outros países...
Portugal está em crise financeira por contágio. Porque é um elo fraco, porque é uma economia fraca, com problemas estruturais, mas não é a Portugal que os capitais financeiros querem atingir. Querem atingir Espanha e Itália. Só que não podem lá chegar sem ir por Portugal, pela Grécia e pela Irlanda. Os nossos comentadores dizem mal do Estado, das políticas sociais, mas depois dizem umas frases suaves sobre os mercados financeiros. Dizem que deviam ser mais regulados e que não deviam ganhar dinheiro com as apostas na bancarrota dos estados e que isso não é uma coisa muito ética. E ficam-se por aí.
O que se passa é um crime contra a humanidade: apostar em títulos de dívida e fazer tudo para que esses títulos não sejam pagos, porque quanto mais bancarrota tiverem mais juros vão cobrar a curto prazo. Eles ganham com a falência dos estados. Jogam com elas porque são mundiais e não há nenhum governo mundial para os regular.
O Prémio Nobel Paul Krugman diz que os mercados são um bando de miúdos de 20 e tal anos, bêbados e encharcados em cocaína...
São um bando de criminosos, que andam por aí muito bem vestidos, mas são uns mafiosos. Não há dúvida que se trata de um crime contra a humanidade, porque estão a lançar para a fome populações inteiras, para que uns poucos enriqueçam de uma maneira escandalosa. Estive em Nova Iorque e na 5.a Avenida bateram-se os recordes de venda dos produtos mais caros.
Voltaram a abrir as carteiras, têm dinheiro como nunca em Wall Street, aqueles que produziram a crise.
Ontem, acompanhando um familiar ao hospital, dei comigo a ler o jornal, matando o tempo no tempo em que decorrem os exames auxiliares de diagnóstico.
Sempre são duas horas que dão, de sobra e à medida que se observa o ambiente circundante, para pôr a leitura em dia.
Uma leitura não muito concentrada, antes ligeira e de passagem, pela rama.
Eis que, de repente, um pequeno texto me sobressalta, prende-me e afunila a atenção ao ponto de sacar da caneta e num circulo o ressalvar.
Alguém que não conheço, assinando Pedro Tadeu, escreve, a propósito dos desejos que não teria a ousadia de pedir neste fim de ano, assim:
"O desejo que todo o dinheiro seja considerado uma riqueza comum, finita, e, por isso, independentemente de quem é circunstancialmente seu proprietário, todos sejam obrigados a prestar contas públicas sobre o dinheiro que conseguiram obter."
Isto, dito assim, à primeira leitura, parece trivial e sem importância alguma.
Mas tem e muita!
Olhando fundo, bem lá no fundo, esta frase encerra o embrião de uma nova utopia:
- Considerar o dinheiro Património Universal da Humanidade.
Se, por utópico, assim fosse tentem imaginar o Mundo e por inerência a humanidade sem "Offshores", "Paraísos Fiscais", "Zonas Francas", "Bandeiras de Conveniência", "a velha e obscura banca suiça" e "Economias Paralelas".
Imaginem ainda, no que à economia paralela diz respeito, o universo e a paleta de interesses onde ela grassa e pulula!
O texto a seguir é uma obra de ficção, mas seu conteúdo é de certa forma atual que merece ser lido e divulgado.
O chefe Guaicaipuro existiu há cerca de quinhentos anos, “Cuatemoc” foi incluído agora pelo autor do texto.
O autor da história é Luis Britto García (foto), que o publicou em 6 de outubro de 2003, para marcar o Dia da Resistência Indígena (12 de outubro), sob o título de: “Guaicaipuro Cuatemoc cobra Dívida da Europa.
Um discurso feito pelo embaixador Guaicaípuro Cuatemoc, de ascendência indígena, sobre o pagamento da dívida externa do seu país, o México, embasbacou os principais chefes de Estado da Comunidade Europeia.
"Aqui estou eu, descendente dos que povoaram a América há 40 mil anos, para encontrar os que a "descobriram" há 500...
O irmão europeu da alfândega pediu-me um papel escrito, um visto, para poder descobrir os que me descobriram.
O irmão financeiro europeu pede ao meu país o pagamento, com juros, de uma dívida contraída por Judas, a quem nunca autorizei que me vendesse.
Outro irmão europeu explica-me que toda a dívida se paga com juros, mesmo que para isso sejam vendidos seres humanos e países inteiros, sem lhes pedir consentimento.
Eu também posso reclamar pagamento e juros.
Consta no "Arquivo da Companhia das Índias Ocidentais" que, somente entre os anos de 1503 a 1660, chegaram a São Lucas de Barrameda 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata provenientes da América.
Teria aquilo sido um saque? Não acredito, porque seria pensar que os irmãos cristãos faltaram ao sétimo mandamento!
Teria sido espoliação? Guarda-me Tanatzin de me convencer que os europeus, como Caim, matam e negam o sangue do irmão.
Teria sido genocídio? Isso seria dar crédito aos caluniadores, como Bartolomeu de Las Casas ou Arturo Uslar Pietri, que afirmam que a arrancada do capitalismo e a actual civilização europeia se devem à inundação dos metais preciosos tirados das Américas.
Não, esses 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata foram o primeiro de tantos empréstimos amigáveis da América destinados ao desenvolvimento da Europa. O contrário disso seria presumir a existência de crimes de guerra, o que daria direito a exigir não apenas a devolução, mas uma indemnização por perdas e danos.
Prefiro pensar na hipótese menos ofensiva.
Tão fabulosa exportação de capitais não foi mais do que o início de um plano "MARSHALL MONTEZUMA", para garantir a reconstrução da Europa arruinada por suas deploráveis guerras contra os muçulmanos, criadores da álgebra e de outras conquistas da civilização.
Para celebrar o quinto centenário desse empréstimo, podemos perguntar: Os irmãos europeus fizeram uso racional responsável ou pelo menos produtivo desses fundos?
Não. No aspecto estratégico, delapidaram-nos nas batalhas de Lepanto, em navios invencíveis, em terceiros reichs e várias outras formas de extermínio mútuo.
No aspecto financeiro, foram incapazes - depois de uma moratória de 500 anos - tanto de amortizar capital e juros, como de se tornarem independentes das rendas líquidas, das matérias-primas e da energia barata que lhes exporta e provê todo o Terceiro Mundo.
Este quadro corrobora a afirmação de Milton Friedman, segundo a qual uma economia subsidiada jamais pode funcionar, o que nos obriga a reclamar-lhes, para seu próprio bem, o pagamento do capital e dos juros que, tão generosamente, temos demorado todos estes séculos para cobrar. Ao dizer isto, esclarecemos que não nos rebaixaremos a cobrar de nossos irmãos europeus, as mesmas vis e sanguinárias taxas de 20% e até 30% de juros ao ano que os irmãos europeus cobram dos povos do Terceiro Mundo.
Limitar-nos-emos a exigir a devolução dos metais preciosos, acrescida de um módico juro de 10%, acumulado apenas durante os últimos 300 anos, concedendo-lhes 200 anos de bónus. Feitas as contas a partir desta base e aplicando a fórmula europeia de juros compostos, concluimos, e disso informamos os nossos descobridores, que nos devem não os 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata, mas aqueles valores elevados à potência de 300, número para cuja expressão total será necessário expandir o planeta Terra.
Muito peso em ouro e prata... quanto pesariam se calculados em sangue?
Admitir que a Europa, em meio milénio, não conseguiu gerar riquezas suficientes para estes módicos juros, seria admitir o seu absoluto fracasso financeiro e a demência e irracionalidade dos conceitos capitalistas.
Tais questões metafísicas, desde já, não nos inquietam a nós, índios da América.
Porém, exigimos a assinatura de uma carta de intenções que enquadre os povos devedores do Velho Continente na obrigação do pagamento da dívida, sob pena de privatização ou conversão da Europa, de forma tal, que seja possível um processo de entrega de terras, como primeira prestação de dívida histórica..."
***
Quando terminou o discurso diante dos chefes de Estado da Comunidade Europeia, Guaicaípuro Guatemoc não sabia que estava expondo uma tese de Direito Internacional para determinar a verdadeira Dívida Externa...