Velho pescador do meu rio
O som do rio revolto ecoa no vulto negro das pedras do molhe recortado pelo branco da espuma da rebentação na barra.
O bater das águas na madeira frágil do bote não deixa ouvir o chapinhar dos remos.
Faz questão de mostrar quem manda, o Mondego, e faz-se ouvir, zangado, na noite fria de inverno.
Vulto erecto de oleado vestido segurando a rede, cabelos brancos de amarguras vividas ondulando ao vento. Por entre a chuva fustigada pelo vento vislumbra-se a silhueta do velho pescador do rio, em pé, no bote.
A gélida chuva escorre e serpenteia pelos sulcos das rugas que no seu rosto louvam a força que à má fortuna não cede.
Só a mão forte e calejada se finca num lamento, denunciando um desalento íntimo pleno de amarguras.
Seu companheiro não vê a lágrima furtiva que se mistura com a chuva, no seu rosto.
Com os olhos fixos na rede relembra, qual filme, todo o percurso dos seus anos.
Relembra o pavor do desconhecido quando, ainda menino e pela mão de seu pai, embarcou pró bacalhau.
A dor intensa do gelo da Gronelândia, qual punhal de vidro e aço, que lhe trespassava as mãos ao manejar o "trote", o "pucheiro", a faca, o "trole", a zagaia, o pingalim ou a isca, não foi nada comparada com a vaidade de ser "o primeira linha" ou o melhor escalador.
Relembra a meninice dos filhos. A angústia de, às vezes, os ter ouvido chorar com fome. A ansiedade de só ter conhecido o mais velho já quase com meio ano de idade.
O medo atroz que o fez rogar a Deus implorando que os tornasse a beijar, quando em pleno Atlântico naufragou e, alucinado de sede, os via junto a si dando-lhe forças para não desistir.
As saudades que deles sentiu, quando para a América fugiu. Já não os conhecia quando os viu.
Sua mulher, já velha, soube-lhe a fresca, a nova quando passados anos de separação a tomou. Foi como reviver a fogosidade dos anos da juventude longínqua.
Enterrou bem fundo dentro de si todos os temores da infidelidade traiçoeira que a separação favorece, mas o amor puro não consente.
Ah... Pescador ...
Ainda menino, pró bacalhau embarcaste
Já homem, pela América, fugido, andaste
E no Atlântico um dia naufragaste.
Fortuna, prós teus, sempre procuraste
Riqueza nunca encontraste.
Os teus, jamais esqueceste e sempre amaste
Os amigos, nunca olvidaste
Só de ti pescador, nunca te lembraste.
O rio, negro, furioso, altivo como que a expulsar-te.
O teu rosto sereno e forte todo o teu mundo retractando.
Meu Deus... Que contraste!