Jealous whores
Eu, para aqui a ouvir esta maravilha e dá-me o pensamento para desalojar da memória a conversa com o velho Mauricio, conhecido por todos como "o mimo do sapato", engraxador dos Aliados.
- Ai, você, com que então, é figueirense. Conheço bem a Figueira. Fui lá muitas vezes em passeio, quando era mais novo, com a familia. Uma das vezes ficamos por lá quatro dias na pensão Demétrio. Acho que é assim que se chama, já não tenho a certeza.
- Olhe, sinceramente não faço a minima ideia - retorqui já meio interessado no desfiar da conversa.
- Naquele tempo tinha uma boa vida, um emprego efetivo nas caves e ainda morfava uns trocos aos turistas ali pela ribeira, ganhava bem. Depois, a partir dos cinquenta é que foram elas e bem duras. Estes pulmões deram cabo de mim e da minha vida. Deixei de poder trabalhar e o que me vale é esta ocupação de engraxador.
Senti-lhe o olhar perdido num qualquer horizonte e admirei-me ao reparar no maço de tabaco no bolso da camisa.
- Deve estar todo inchado com o prémio Leya deste ano atribuido a um escritor figueirense - atirou-me.
- É verdade amigo - disse eu intrigado com o virar repentino do tema da conversa e sentindo o peso do seu olhar interrogativo.
- Olhe que aqui o Mauricio é engraxador mas gosta de ler uns livritos e esse vosso António Tavares sabe o que faz. Já o li - o Coro dos Defuntos - e tocou-me fundo a forma como ele fala das nossas coisas com aqueles termos tão nossos do povo da provincia.
- Sim, é verdade também já o li e tive necessidade de recorrer ao dicionário para entender o significado de muitos desses termos. Vou dar-lhe uma novidade; tenho o privilégio de o conhecer pessoalmente.
- Ora ai está uma coisa que invejo. Poder conhece-lo para lhe pedir um autógrafo no livro.
Fiquei em silêncio observando o brilho em crescendo das botas e a agilidade do pano de lustro.
- Por falar em inveja ... - olho-o e ele continua.
- Já lho disse, conheci bem a Figueira e, se continua na mesma como era, ele que se ponha a pau com a inveja de ditos eruditos que por lá cigarreiam. No outro dia pedi ao meu neto mais velho que me ajudasse a pesquisar na internet sobre o autor e dei de caras com uns morcões de uns bloguistas, ou blogueiros, ou, sei lá como se chamam, a desancar no homem "concuminados" que até doia. Aquilo cheirava a invejice e a dor de corno que tresandava, carago!
Olha-me, sorrindo do meu espanto e diz-me:
- Prontos, já estão um mimo. Eu não lhe disse?
Paguei, desejando-lhe Boas Festas.
Baixo os olhos ao levantar-me e quase me sinto o reflexo nas botas. Saio dali a pensar:
Sábio, sábio é o povo, ó morcões!