Reflexão - memórias...
Memórias ...
Reflexão sobre os aspectos culturais da Freguesia de S. Pedro - decorria o mês de Março de 2002.
(Segundo o dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, cultura é o mesmo que:
... maneiras colectivas de pensar e sentir...
... conjunto de acções do meio que asseguram a integração dos indivíduos numa colectividade...
... conjunto de costumes, de instituições e de obras que constituem a herança social de uma comunidade ou grupo de comunidades ...
Segundo o filósofo, professor Agostinho da Silva:
“... a verdadeira cultura deste povo não é traduzida pelas pseudo elites intelectuais de Lisboa, mas sim pelo sabedoria ancestral do povo anónimo que amanha a terra e pesca nos mares e rios deste país...”)
A freguesia de S. Pedro reúne os povoados da Cova, Gala e ainda o Cabedelo e parte da Morraceira.
Originalmente emergiu e desenvolveu-se a partir da radicação de pescadores de Ílhavo nas dunas da praia, que hoje se chama de Cova, por volta dos anos de 1750/1770.
O interesse económico proporcionado pela abundância de pescado que o mar a sul da foz do rio Mondego, então apresentava, motivou uma rápida e crescente ocupação destas terras.
A proximidade do rio e do seu braço sul, mesmo ali a cerca de um quilómetro, propiciou uma variedade de ocupação na pesca de outras espécies que demandavam o rio, na apanha de bivalves e crustáceos e no aproveitamento do sal que as marinhas e o clima ameno permitiam. Possibilitou ainda que, durante os rigores de inverno, com o mar inacessível, a subsistência fosse garantida no abrigo do estuário do Mondego e do seu braço sul.
São estes factores e também a proximidade das vias de acesso e escoamento do pescado, que justifica a deslocação de alguns pescadores ilhavenses para junto do rio dando assim origem, presume-se, ao povoado da Gala.
Temos pois que, emerge um povoado nas dunas junto ao mar, a Cova e outro junto ao rio, a Gala.
Ambos tem um denominador comum que reside no facto de os seus fundadores terem a mesma e única origem nos pescadores ilhavenses, que um dia demandaram estas paragens à procura de melhores condições de vida.
Apesar da origem comum, estas duas povoações coexistiram separadas por um quilometro de areias, dunas, e valados que ajudou a clivar algumas diferenças de vivência social, alicerçadas em manifestações de bairrismo peculiar traduzidas através das suas danças e cantares que foram, quase sempre, corporizadas em “Ranchos” Folclóricos.
A um “rancho” da Cova que aparecesse a expressar a etnografia do povo da Cova, logo se contrapunha um outro na Gala. A ordem dos factores é, aqui, arbitrária como facilmente se compreende.
No entanto, esta rivalidade que teria algumas razões de ordem comportamental e diferenças de vivência social, ajudou a perdurar a lembrança e história das suas raízes comuns onde o mar é elemento predominante e insubstituível.
Um único elemento continuava impassível a ligar umbilicalmente as deambulações deste povo, porque só de um povo se trata, por este mundo a fora;
O mar!
O mar o trouxe às dunas da Cova, o mar o levou a pescar por esse mundo, quer na pesca do Bacalhau nos mares frios do norte, quer na pesca do Cabo Branco nos mares quentes de África, em Angola, Moçambique, Guiné, África do Sul, Ásia, América do Norte ou do Sul.
Foi também o mar que o fez percorrer as sete partidas do mundo na marinha mercante de comércio e cabotagem.
Foi ainda o mar que o levou como colono para as províncias ultramarinas ou como emigrante para as américas.
O mar justifica a existência de estaleiros para a construção de barcos, então em madeira, onde muito do suor de calafates e carpinteiros era vertido por homens da Cova e da Gala.
No mar se abrigou das agruras e medos da guerra colonial, esquecendo-se de que nele e por ele sofria, porventura, outras de igual monta.
E é sempre o mar que o faz regressar à sua terra, temporária para matar as saudades ou, definitivamente, para nela sentir saudades das terras e mares que percorreu.
O rolar dos tempos fez crescer estes dois povoados, inexoravelmente, de encontro um ao outro.
Este lento crescer, que foi a regra até aos anos sessenta, setenta do século XX, viu-se transformado, de repente e após a revolução dos cravos de 1974, numa explosão de crescimento e desenvolvimento habitacional que poderemos considerar, hoje, extraordinária.
Rapidamente os dois povoados se unem de facto e se homogeneízam em consequência do regresso de muitos dos seus filhos espalhados pelas antigas colónias e de muitos dos seus emigrantes face à melhoria da qualidade de vida a que se assiste neste país.
As praias, outrora local de trabalho dos ancestrais ilhavenses, se transformam, fruto das suas esplêndidas condições naturais, em apetitosos locais de veraneio que convidam à radicação de muitas famílias que aqui decidem passar a viver em detrimento dos seus locais de origem. É ver, no lugar dos antigos barcos da arte, das redes e dos pescadores os, “Winsurf,” as pranchas de surf, os “bodyboard”, as moto de água e os “surfistas”, banhistas e turistas.
O rio, viveiro de muito da subsistência do povo da Cova e da Gala e abrigo dos rigores de inverno, metamorfoseia-se e dá lugar à pesca desportiva e de lazer, à vela e às corridas de moto náutica.
As bateiras, as lanchas, os batéis e os botes de madeira e a remos são agora substituídos por modernos barcos de fibra de vidro, já sem alvará de pesca ou transporte de sal, mas com carta de recreio.
A morraceira, outrora sede de importantes companhias armadoras de pesca de bacalhau, com as suas secas, salgas e os ranchos de homens e mulheres que lá trabalhavam nas secas e no sal, dá lugar a fábricas de confecções e de congelação, ao mesmo tempo que assiste ao abandono das frotas de pesca, à ruína das antigas secas de bacalhau e à redução extrema dos estaleiros, agora já de construção metálica e vocacionada para os meios de transporte de carga e passageiros.
A pesca da sardinha de cerco e de arrasto vê reduzida substancialmente a sua frota, no cumprimento rigoroso das directivas comunitárias.
O Cabedelo, outrora um labiríntico canal de extensões do rio que se espraiava desde o Coxinho, até ao antigo bairro dos pescadores e à fabrica, deu lugar a um enorme aterro que tudo submergiu em favor do porto de pesca e da lota.
O número de Cova-Galenses exclusivamente dedicados à pesca, outrora a quase totalidade dos seus habitantes, hoje não passa de uma minoria.
O número de habitantes da Cova-Gala, não naturais, não pára de crescer.
Os novos tempos se encarregaram de unir estes povoados de os tornar mais cosmopolitas e trouxeram maior e melhor qualidade de vida, mas também se encarregaram de diluir o tipicismo e a génese das nossas origens.
O mar perdeu o seu protagonismo.
Sendo em si mesmo a génese da nossa existência, hoje não passa de uma vista deslumbrante, ora calma e serena, ora feroz e medonha ou, ainda, a evocação nostálgica dos mais velhos, quando, no seu deambular diário o fitam no horizonte vasculhando na lembrança dos tempos à procura de recordações que, mesmo que sofridas, foram vividas intensamente.
Não foi só o mar que perdeu protagonismo.
A, outrora, tradição cultural de expressão popular que eram os cantares e os dançares, os “ranchos”, os bailes, as tunas, as peças, os jogos populares e as “negaças” e partidas do entrudo, deu lugar a este voraz consumismo que a vida moderna trouxe e criou outras formas de diversão e entretinimento mais sofisticadas e americanizadas, como sejam o cinema, a televisão, o vídeo, os jogos de consola e computador.
A manifestação colectiva de expurgar as agruras da vida profissional e social de então, que eram as colectividades, ditos clubes, deu lugar a um, cada vez maior isolamento social preservativo de pseudo diferenças sociais e culturais derivadas de uma maior ou menor pseudo nobreza e diferenciação profissional.
Os tempos rodam no seu girar constante trazendo com eles novas realidades e situações. Os povos, quando não têm o poder de os moldar a seu gosto (raridade só ao alcance das “elites reinantes”), sujeitam-se a moldarem-se a ele. Não sendo nenhuma “elite reinante”, o povo da Cova-Gala, aliás bastante humilde desde as suas origens, moldou-se às exigências dos tempos sendo, hoje, uma sociedade multifacetada comportando no seu seio agricultores, operários fabris, de construção e metalomecânica, pescadores, motoristas, funcionários públicos de saúde, secretaria e serviços, enfermeiros, médicos e advogados, comerciantes, bancários e empregados judiciais, assim como vendedores, empresários e variadas profissões liberais e por conta de outrem.
Sendo, outrora e ainda , uma terra de emigrantes acolhe, agora, várias dezenas e dezenas de trabalhadores imigrantes dos países de leste que a este país têm acorrido nos últimos tempos.
Os nossos jovens, embora não tendo, ainda, uma percentagem elevada de um percurso escolar até aos mais altos níveis, estão, cada vez mais, a trilhar os caminhos da escola, sendo já um número interessante a percentagem de frequência dos graus mais avançados da escolaridade.
As nossas crianças usufruem de um ensino pré-escolar de muito bom nível, que as prepara para os longos anos do ensino obrigatório, secundário e superior.
Não está em causa criticar a forma de viver pessoal, familiar e social dos tempos modernos.
Ela é uma realidade e em muitos aspectos bem melhor do que a que os nossos antepassados usufruíam.
O que está aqui em causa é a determinação consciente das nossas origens, o conhecimento do percurso dos nossos antepassados, das suas incidências e a carga genética que, queiramos ou não, somos transportadores e herdeiros e faz de nós o que hoje somos.
Importa salientar que, tendo a consciência e conhecimento das nossa raízes e origens, da sua particularidade e peculiaridade e, ainda, do perigo de a fatuidade dos tempos modernos poderem levar ao seu esquecimento, será como que um crime nada fazer para perdurar a lembrança da sua existência.
Nos últimos tempos e face à inacção reinante, colectivamente falando, quase apetece dizer que esse crime estará em vias de se consumar.
Honra a quem, como o executivo da Junta de Freguesia de S. Pedro e do seu presidente, Carlos Simão, muito têm feito para que tal não venha a acontecer e o convite para que este grupo de trabalho se implante e funcione, é exemplo disso mesmo.
Honra a quem a nível pessoal e particular, através de recolha de utensílios e material etnográfico, da reconstrução de miniaturas quer de embarcações quer de casas típicas antigas, da implantação e erecção de monumentos de tributo aos nossos antepassados e à sua vivência, tem contribuído decisivamente para que o crime não aconteça. Refira-se aqui os pescadores anónimos, movidos pelo amor à sua arte que constróem as miniaturas dos seus barcos e ainda os Srs. Manuel Alberto e Mário Pita.
Honra, ainda, a todos os, ainda anónimos, que guardam as suas memórias, as suas fotografias antigas, os seus escritos, as suas canções e poemas, os seus pensamentos e vivências. Perduram assim a identidade do seu povo.
Honra, também, aos Cova-Galenses que, “da lei da morte se libertaram” e publicaram em livro as memórias das “Terras do Mar Salgado”, Capitão João Pereira Mano e as memórias de “A Figueira da Foz e a Pesca do Bacalhau”, Manuel Luís Pata.- “para que a poeira dos tempos não apague”.
Ao aceitarmos fazer parte deste grupo que deverá ter como missão recolher, estudar, entender, mostrar, fazer reviver e perdurar, a nossa génese, a nossa cultura e a nossa história, estamos também, humildemente, a contribuir para que tal crime não aconteça.
Todos nós a nível pessoal já demos provas de podermos ser úteis à nossa terra pela capacidade de trabalho e interesse pela causa pública. Podemos, assim, de forma concertada, e unindo esforços em grupo, potenciar as nossas características e valências pessoais em prol da cultura e da memória colectiva da Cova-Gala.
Aqui cabe uma palavra de reconhecimento a todos os que, não sendo naturais da Cova-Gala, nela não só decidiram viver como também têm contribuído para o bem estar público e colectivo.
João Pita
Cova-Gala, 01/03/2002