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Cova d'oiro

... algures na costa portuguesa mesmo a sul da foz do rio Mondego. Era, como se dizia então, um bom pesqueiro. Havia fartura de pescado e as artes, ainda novas e de não fácil manuseio, vinham carregadas até á vergueira

Cova d'oiro

... algures na costa portuguesa mesmo a sul da foz do rio Mondego. Era, como se dizia então, um bom pesqueiro. Havia fartura de pescado e as artes, ainda novas e de não fácil manuseio, vinham carregadas até á vergueira

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O Sr. João

O Sr. João

Sim, só assim desta forma simples, João.

Claro que podia acrescentar o apelido e tornar-se-ia de imediato mais conhecido da maioria, no entanto prefiro apresentá-lo como simples ser humano, “desapelidado” de família, mas filho de deus e nosso irmão.

Como qualquer um de nós o Sr. João foi-se moldando na argamassa resultante das características naturais advindas de seus próprios genes e de todas as circunstâncias que o foram envolvendo ao longo da vida. E, aqui, nas circunstâncias, identificamos a família, a escola, os amigos, o trabalho, os bairros, as aldeias e as sociedades.

O homem é de si mesmo e das suas circunstâncias.

Do mesmo modo que alguns nascidos num berço de oiro ao longo da vida se vão degradando tornando-se indigentes, outros há que nascidos na miséria dela se libertam e evoluem atingindo patamares de excelência.

Voltemos ao Sr. João. Aparenta ter oitenta anos alquebrados pela idade e pelas mazelas da vida umas procuradas outras nem tanto, pele curtida pelos dias e suja pela ausência de cuidados, agarrado a uma bengala que o vai ajudando no seu débil e precário equilíbrio, olhos baços de excessos, olhar vazio de vida. Veste sempre da mesma forma suja e andrajosa faça chuva ou faça sol, seja inverno ou verão; calças sujas, camisola suja, casaco sujo e calça umas botas sujas e gastas bem maiores que os pés.

O Sr. João está sempre em movimento, dobrado sobre si mesmo vai arrastando as suas botas pelas ruas da Cova e da Gala. Leva sempre numa das mãos um balde ou um saco de plástico. Neste arrastado deambular compulsivo em delírio de recolector vai do rio ao mar recolher o peixe que julga lá encontrar. Vai do mar ao rio no mesmo impulso delirante de recolector. E vai da doca do cabedelo à Gala, da Gala ao rio, do norte ao sul e do sul ao norte. Neste impulso delirante, o Sr. João não para, vai titubeando palavras que só ele entende e não consegue controlar as suas necessidades mais básicas e fisiologicamente humanas. Então, nem sempre só a urina escorre pelas pernas das calças e por lá seca.

O Sr. João avista-se ao longe e ao longe se sente sempre só, absolutamente só.

As circunstâncias que envolvem o Sr. João são a nossa sociedade, a sociedade onde se arrasta e deambula. Ia escrever vive mas não fui capaz.

A nossa sociedade, as suas circunstâncias, vê-o mas logo desvia o olhar. Para a nossa sociedade, o Sr. João só existe quando se avista. Parece que deixa de existir quando não o avistamos. Por onde andará o Sr. João quando a noite cai? Dormirá dentro de um qualquer carro abandonado ou entre dois muros coberto por duas tabuas, uns papelões e umas mantas? Não se avista, não se vê. As suas circunstâncias descansam.

Mas o que são as circunstâncias do Sr. João, a nossa sociedade? Uma sociedade normalíssima composta na sua maioria por cidadãos contribuintes de uma sociedade democrática e contributiva e que foi sonhada para que a dignidade humana fosse garantida, principalmente aos que mais precisam. Ninguém devia ficar para trás, sonhava-se então.

Será que ainda se sonha?

A nossa normalíssima sociedade que personifica as circunstâncias do Sr. João é composta, também, por vários tipos de poder; o autárquico, o judicial, o eclesial, o de sanidade pública e o de influência. Depois existem os parceiros sociais onde se incluem as coletividades (desportivas, recreativas, de cultura - não, não existem), as igrejas nas suas missões de fé bem-intencionada, as instituições de apoio social, as associações de pais, de moradores e as galas de mérito.

E ainda a comissão local social e o conselho de apoio social.

Ser eleito ou empossado para um qualquer destes poderes ou parcerias e ser presente às suas reuniões dá sempre uma determinada e efémera dignidade social.

Mas deixemos para lá isso e voltemos ao Sr. João, porque do que ele precisa mesmo é que a sociedade por onde se arrasta e deambula olhe para ele de frente e lhe garanta na precária vida que lhe resta a dignidade humana que merece.

Sei que não é fácil, não tem sido fácil, mas não sermos capazes de garantir a dignidade humana a um dos nossos devia envergonhar-nos.

Caravela Sagres St MManuela e Creoula

João Pita

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