Terra, Vida, Saber, Ser.
O velho pescador, sentado com os antebraços apoiados na pedra da falésia de fronte ao mar, desenhava.
Mirava o mar e desenhava. Pintava.
Quem por ali passasse distraído diria que pintava as ondas, o mar e o horizonte.
Puro engano.
Olhando com mais atenção via-se que desenhava a própria mão. O braço esquerdo apoiado no cotovelo, sobre-elevado em diagonal, mão ligeiramente descaída e os dedos arqueados em concha, formando com o polegar uma espécie de gruta, de nicho. Um abrigo.
Contornou e reforçou o desenho do polegar, da unha e realçou a aspereza dos calos que uma vida inteira de trabalho no mar, ali deixara testemunho.
No interior da concha de abrigo em que se transformara a sua mão, desenhou uma flor, um cravo. Inundada de luz vermelha refulgente, mas tão frágil, tão fugaz, tão suspensa.
O velho pescador descansou o lápis mirou uma vez mais a flor, o cravo e, de seguida, alongou o olhar para o mar. Aí se ficou, ao longe se perdeu.
Num sobressalto retoma o lápis.
Desenha frenético, na parte inferior do papel, um chão de terra castanha atapetado pelo “Funcho do Mar” e salpicada, aqui e ali, do verde do “Chorão-da-Praia”. À esquerda, meia dúzia de viçosos “Lírios das Areias” escondem o emergir da terra do braço e do pulso. Ao centro, mesmo por debaixo da falange do polegar, três pedras húmidas e juntas abrigam um tufo de “Madressilvas”.
No centro do papel, sob a mão e à sua sombra, desenha um livro entreaberto pelo meio. Repousa sobre a cruz de uma âncora - um ferro almirantado - cravada no chão de terra.
A haste desta âncora alonga-se por de baixo do pulso e entrelaça-se pelo cepo a uma enxada cravada na terra. O longo cabo da enxada eleva-se em diagonal por detrás da mão e aponta ao cimo.
O velho pescador pára de desenhar, olha o mar uma e outra vez e retoma.
Desenha agora os contornos da folhas do livro e o mesmo ganha volume e conteúdo.
Procura um lápis mais grosso e escreve nas duas páginas abertas:
Na da esquerda, em cima: Vida.
Junto ao rodapé: Ser.
À direita , no topo: Saber.
Lá em baixo: Terra.
Levanta-se agora o pescador, estica as pernas e as costas já doridas. Olha o papel a sua obra e mordisca o indicador direito pensativo.
Torna a sentar-se e desenha uma hera trepadeira. Nasce do chão húmido, sob o livro e rente ao ferro almirantado. Cresce e trepa sinuosa até ao alto, à ponta do cabo da enxada. A ele se enrosca uma, duas voltas.
Suporta uma enorme planta, sem flor, meio seca e com as raízes suspensas no ar.
No canto superior esquerdo traça a risco esparso um sol que inunda de luz e calor todo o desenho.
Não resisto mais, chego-me ao velho pescador, que há muito tinha, discreto, topado a minha curiosidade.
- Ó ti Zé, desculpe a curiosidade. Porque desenhou a planta meio seca, suspensa no ar e sem ter as raízes na Terra?
Sorriu, mirou-me fundo nos olhos, deu-me o desenho e disse:
- Toma jovem, é para ti.
Olha-o com atenção.
Quando souberes a resposta a essa pergunta volta aqui.
Vem ter comigo e acabamos de o desenhar juntos.